Regressão:

Me acomodei, fechei os olhos para uma reflexão.
Em silêncio fiz uma prece e depois mergulhei
nos labirintos da memória consciente adentrei
em uma viagem fantástica, fiz a minha regressão.

Açoitado sem piedade por um ciclone enfurecido,
tragado no torvelinho mergulhei fundo no passado,
em um ponto de partida, em um lugar determinado,
gargantas de vulcões jorravam elementos derretidos.

Mandíbulas descarnadas nas entradas das cavernas,
pássaros enormes cruzam os céus em vôos rasantes,
urros medonhos de feras, tropéis de animais gigantes,
um grupo de primatas iniciavam uma jornada eterna.

A aurora descortinou no horizonte cinzento da razão
um objetivo sagrado, deveria por mim ser alcançado,
mas o tempo dessa conquista seria indeterminado,
para lapidar uma pedra bruta e atingir a perfeição.

II
A história foi escrita por cataclismos turbulentos,
pelos escombros de carcaças de uma era glacial,
pela extinção total da vida na matéria animal,
flutuando entre trevas despertei em outro tempo.

Uma aurora mais límpida, sem fumaça de vulcão,
um firmamento mais azul de oxigênio mais puro,
um horizonte mais formoso se abriu para o futuro,
no inicio da caminhada o meu primeiro tropeção.

Pelas sendas do mundo me tornei em viajante,
luz e trevas se fundiram no arquivo da memória,
personagem sem escrúpulos escrevi minha história
com as lágrimas e o sangue dos meus semelhantes.

No estigma da crueldade fui mestre em tortura,
se nascido na opulência era tirano e implacável,
menosprezava por prazer os famintos miseráveis
e jamais sentia compaixão por alguma criatura.

III
Trevas insondáveis envolveram minha existência
uma força mais refratária se tornou meu algoz,
um castigo tão cruel, meu sofrimento foi atroz,
estava sendo julgado pela minha consciência.

Para dar seguimento é necessário que haja um elo
de retorno na matéria, através da reencarnação,
onde o culpado é punido, segundo a lei de Talião,
a justiça é solidária nos dois mundos paralelos.

Desprovido da visão, de uma imobilidade absoluta,
um ser repugnante que somente causa compaixão,
abandonado em um catre na mais negra solidão
no quarto sujo de um bordel, aborto de prostituta.

Prisioneiro incomunicável pelos laços da matéria,
sem o direito de sentir um simples raio de luz
esmagado no chão com o peso da minha cruz,
os vermes rastejantes, meus aliados na miséria.

IV
Viajante teimoso que não chega no fim da viagem,
as quedas se repetem pela deficiência do caminho,
andando sobre flores, ou me rasgando nos espinhos,
trago na alma a experiência de muitos personagens.

Ouvi as queixas de Adão ao senhor Deus Javé,
no perfumado paraíso, na Gênese da humanidade
naufraguei-me no dilúvio da medonha tempestade,
dando gargalhadas de deboche da arca de Noé.

Nas areias escaldantes, no tempo da servidão,
escravo servi nas pirâmides do Faraó Ransés,
fui integrante dos hebreus libertado por Moisés,
desesperançado no êxodo, perambulei sem direção.

Nos campos de batalha lutei ao lado de Sansão,
no pergaminho da memória gravei os salmos de Davi,
minha trajetória pelo tempo vacilante prossegui,
já fui eunuco de harém no palácio do rei Salomão.

V
Com o corpo enfermo e faminto no meio da multidão
ouvia as mensagens do Mestre, sem nada entender.
Sentia fome do alimento, não a fome do aprender.
Ele me saciou com o fenômeno da multiplicação.

Naquele rebanho me sentia uma ovelha desgarrada
ouvia embevecido os ensinamentos do bom senhor.
Ele falava da humildade, da importância do amor.
Falava em perdão, em Deus, e suas leis sagradas.

Em sua terceira queda tentei dele me aproximar
quando senti na carne o azorrague de um centurião.
O Nazareno me observou, ainda de joelhos no chão,
simplesmente observou, com um fulgor em seu olhar.

Vacilante, procurei daquele olhar me esconder.
Me sentia envergonhado, do infeliz procedimento
por entre a multidão acompanhei o seu sofrimento,
um sentimento suave em minha alma sentir nascer.

VI
Através do tempo, em outros lugares diferentes,
vou trocando de corpo nos continentes da terra,
trago na alma o clamor da interminável guerra,
os inimigos persistem, estarão sempre presentes.

Com novos objetivos recomecei minha jornada
amando outra bandeira, falando outro idioma,
lutando na arena da alma, trazer o tesouro à tona
o coração mais humano, a mente mais aprimorada.

No cadinho da existência, prossigo em minha fusão,
em busca daquele olhar dei o meu primeiro passo,
mas, a distância é infinita, e se perde no espaço,
para lapidar a pedra bruta e atingir a perfeição.

E assim, pela sucessão dos séculos vou viajando
em busca da tão sonhada, e tão difícil lapidação,
mas, hoje em meu caminho só existe uma direção,
e nele, lentamente, passo à passo, vou caminhando.

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