II – O genioso fidalgo Dom Quixote

II – Segundo episódio que trata da primeira jornada que o genioso Dom Quixote da Mancha fez na sua terra

Vou agora prosseguir
com a minha narrativa
recolhida nos anais
da memória coletiva
ou até em documentos
de pesquisa exaustiva

O leitor ficou ciente
no decurso do relato
como foi que o fidalgo
decadente mas pacato
começou a baralhar
lenda, ficção e fato

Nem o mais abilolado
nunca não tivera antes
a idéia que ele teve
em favor dos semelhantes:
restaurar o resplendor
dos cavaleiros andantes

Quando ele convenceu-se
que seu plano era rotundo
e a moral cavalheiresca
já fazia falta ao mundo
na fazenda onde morava
não ficou nem um segundo

Vestindo sua couraça
com bastante confiança
embraçou a sua adarga
empunhou a sua lança
só pensando em avançar
na estrada sem tardança

Cavalgando satisfeito
com a velha armadura
uma idéia quase o fez
desistir da aventura:
– Não existe cavaleiro
antes da investidura…

Como já não separava
o real da fantasia
nessas horas o velhote
seus problemas resolvia
recordando os romances
que na memória trazia

Pois pra ele as novelas
forneciam um roteiro:
– Tudo posso resolver
ao topar com o primeiro
que quiser me ajudar
me ordenando cavaleiro

E passou a divagar
que um grande escritor
da estirpe de Homero
narraria com vigor
sua saga estupenda
encantando ao leitor

– Não duvido que narrando
minha história verdadeira
ao contar as aventuras
desta jornada primeira
num estilo exuberante
faça por esta maneira:

– O paladino Quixote
de engenho tão subido
o território espanhol
percorria decidido
escrevendo a epopéia
do guerreiro destemido

– Oh, cronista, peço que
em seu relato facundo
lembre que o cavaleiro
que é da Mancha oriundo
sem ter o seu Rocinante
não assombraria o mundo!

Desdizendo o velhote
no decurso desta rota
não estava acontecendo
nada digno de nota
Mesmo o que ele fazia
não daria uma anedota

Esperando encontrar
na estrada um gigante
foi não foi ele apeava
do cavalo Rocinante
com intento de mijar
pra então ir adiante

Por veneta o cavaleiro
escanchando-se na sela
repetia pra si mesmo
a linguagem de novela
imitando do seu jeito
trechos retirados dela:

– Minha doce Dulcinéia
que na hora da partida
aceitou minha viagem
com a alma dolorida
sei que foi aquela dor
a maior da sua vida!

– Se a saudade quiser
ampliar seu sofrimento
deixe ser a esperança
o penhor do seu alento
que sem ela nada sou
mas com ela me ausento!

– E com tanta esperança
me levando pra diante
eu prometo, doce amada,
que o primeiro gigante
derrotado em batalha
deixarei a seu talante!

Disparando disparates
feito um doido varrido
Dom Quixote cavalgando
por um trajeto comprido
foi ficando ainda mais
de miolo amolecido…

Depois de desperdiçar
muito tempo em viagem
com o dia terminando
avistou a estalagem
que cansado e faminto
escolheu como paragem

O lugar que encontrou
era um sobrado singelo
mas Quixote absorto
em seu mundo paralelo
presumia estar diante
do mais imenso castelo

O velhote conduzindo
o cavalo pra pousada
conservando a viseira
do seu elmo levantada
viu que tinha duas jovens
bem diante da entrada

Totalmente envolvido
pelo mundo das novelas
Dom Quixote presumiu
serem duas damizelas
Refreando Rocinante
foi dizendo para elas:

– Se as moças permitirem
eu explico a que venho
pois da ordem cavaleira
sou um defensor ferrenho
e por damas tão galantes
com mais zelo me empenho

No estado que estava
ele não podia ver
que as duas em questão
eram feias de doer
e discursos empolados
não iriam entender

Sem falar que elas eram
da baixa sociedade
mas Quixote já estando
longe da realidade
enxergava em cada uma
um modelo de beldade

Na presença de figura
tão faltosa de juízo
inda mais com um colete
velho, feio, sujo e friso
essas duas se olhavam
sem poder conter o riso

Quase ficando a ponto
de perder a polidez
mas fazendo um esforço
para se manter cortês
Dom Quixote para elas
foi falando outra vez:

– Nada existe mais afim
com as vossas formosuras
no que tange à etiqueta
que a virtude das mesuras
mas os risos malbaratam
o padrão das composturas

Escutando o discurso
de linguagem rebuscada
e ficando novamente
sem ter entendido nada
elas passaram do riso
para grossa gargalhada

Vendo elas se portando
sem nenhuma etiqueta
e que ambas já estavam
gargalhando com careta
Dom Quixote foi ficando
de cordato pra ranheta

Passariam desse ponto
se não fosse o vendeiro
ir saindo da taberna
caminhando bem ligeiro
para ver se poderia
atender o cavaleiro

Ajudando Dom Quixote
a descer da montaria
mesmo ficando cismado
pelo traje que vestia
indagou se ele estava
procurando pousadia:

– Se o amigo quiser
retardar sua partida
deixe o cavalo comigo
e prove nossa comida
Só não posso oferecer
um lugar para dormida

– Castelão, em humildade
ao senhor não me igualo
Eu tenho plena certeza
que terá o meu cavalo
um distinto tratamento
ensejando seu regalo

– Meu corcel é Rocinante
um cavalo sem iguais
que na liça mais renhida
não retrocede jamais
exibindo o seu valor
com pujanças colossais

Mas o taberneiro viu
que o velho matusquela
tinha só por montaria
um cavalo de Gonela
arriscando se vergar
só com o peso da sela

Sem ter muita paciência
com sujeito extravagante
inda mais fantasiado
como cavaleiro andante
carregou o seu matungo
entregando ao ajudante

Da cocheira retornou
reparando divertido
que as moças com Quixote
já tinham se entendido
ajudando o cavaleiro
para que fosse despido

Que sentado na cantina
já estava ao lado delas
conversando com as duas
que chamava de donzelas
Elas o tinham levado
para perto das janelas

E assim foram tirando
a lombada e corselete
pra deixar o cavaleiro
sem o peso do colete
A maior dificuldade
foi tirar o capacete

Depois de muito puxar
mas sem ver o resultado
o cavaleiro pediu
que o deixassem de lado
parecendo para todos
um cogumelo sentado

Ele imaginando estar
numa enorme fortaleza
e que estava recebendo
tratamento com fineza
fazia belos discursos
para as damas da mesa:

– Nunca fora um cavaleiro
por damas tão bem servido
como fora Dom Quixote
o guerreiro mais subido
Dele tratavam donzelas
com o melindre devido!

Elas foram escutando
sem dar muita atenção
só pedindo que parasse
com a sua explanação
na chegada do momento
de fazer a refeição

No cardápio apresentado
por motejo ou descaso
tinha pão que foi servido
com dois dias de atraso
num pirão de caldo grosso
dentro de um prato raso

E no prato com o caldo
parecendo uma lavagem
disputavam o espaço
agrião, jiló e vagem
com o sal e a pimenta
temperados sem dosagem

Mas pra ele a gororoba
era o mais fino jantar
dizendo que o tal prato
se um rei fosse provar
a receita honraria
o seu nobre paladar

E mesmo que na cabeça
lhe pesasse o morrião
parecendo satisfeito
com a nobre refeição
para as damas ele fez
uma breve confissão:

– As damas vão assentir
que agora eu não minto:
se a fome está na mesa
para ser claro e sucinto
quão difícil é jantar
sem parecer um faminto!

Nisso foi chegando ali
distraído um porcariço
que entrava na taberna
retornando do serviço
assoprando cinco vezes
sua flauta de caniço

Escutando aquele som
(para ele harmonioso)
Dom Quixote confirmou
comovido mas ditoso
que estava no salão
dum palácio suntuoso

Mas estava incomodado
com a tal investidura
pra poder de uma vez
se lançar na aventura
percorrendo a Espanha
na sua cavalgadura

Um comentário em “II – O genioso fidalgo Dom Quixote”

  1. Gostei muito, foi um prazer ler esse poema. A forma, o ritmo, o vocabulário, tudo combina e entona com a imortal obra de Cervantes.

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